sábado, 30 de junho de 2007






"Estou doente. Taco, meu médico e amigo prescreveu champanhe gelado. Brut. E gelo nas têmporas. E sabes por que estou doente? Porque pressinto surpresas, notícias inquietantes, vindas não sei de onde, talvez de ti. (E por outra coisa que já te digo.) Sinto também que não devemos continuar com as cartas. Te vejo dissimulada, escondendo algo muito sério. Por que não permites que eu vá até sua casa? O que guardas aí? De alguma maneira me transformaste num escriba ou melhor num escrevinhador, e só de saber que tu me pensas escritor agiganta-me a náusea. Que tipos petulantes! Que nojosos! Esgruvinham as virilhas, o pregueado, scarafuncham os sórdidos corações, as alminhas magras, e daí enchem-se de arrotos quando terminam os textos. Verdade que adoro os livros, mas se pudesse arrancar de mim a visão dos estufados que os escreveram vomitaria menos o mundo e a própria vida. Tínhamos um amigo, o Stamatius (!) (eu só o chamava de Tiu, porque, convenhamos, Stamatius não dá) que perdeu tudo, casa e outros bens, porque tinha mania de ser escritor. Dizem que agora vive catando tudo quanto há, é catador de lixo, percebes? Vive num cubículo sórdido com uma tal de Eulália que deve ter nascido no esgoto. Muitos o procuram para ajudá-lo. Não quer nem saber. O Tiu quer escrever, só pensa nisso, pirou, sai correndo de pânico quando vê alguém que o conheceu. Carrega no peito uma medalha de Santa Apolônia, protetora dos dentes. Ah, não tem mais dentes. Bonito o Stamatius. Elegante, esguio. A última coisa que fez antes de sumir por aí foi torcer as bolotas de um editor, fazê-lo ajoelhar-se até o cara gritar: edito sim! edito o seu livro! com capa dura e papel bíblia! Só então largou as bolotas e balbuciou feroz: vai editar sim, mas a biografia da tua mãe, aquela findinga, aquela léia, aquela moruxaba, aquela rabaceira escrachada que fodeu com o jumento do teu pai - e quebrou-lhe os dentes com a muqueta mais acertada que já vi. Quebrou a mão também. Bem, mas isso não vem ao caso. Ao caso pior: o Kraus morreu. A Cuzinho num
acesso de indignação não só a cause do apelido mas desesperada com todas as indignidades vindas do Tom, invadiu a casa do Kraus com o linguão de fora, e alguns dizem que o perseguiu pela casa inteira uma boa meia hora, escobilhando a comprida. Consta que o Kraus tapava o aro morrendo de rir literalmente. E acreditas? Morreu. O Tom quer provar homicídio, quer o testemunho de todos os amigos e dos terapeutas também, mas quem é que vai acreditar que um cara morreu de rir só com a ameaça de lhe lamberem o botão? A turma do pólo está estudando um plano, alguma nefanda crueldade para Amanda. Dizem que vão lhe enfiar algumas bolas de pólo polpas e pombinha adentro. Se assim for resolvido manda-me os tocos dos tais ficheiros. Haja bola! Tom foi medicado na hora do enterro de Kraus porque não suportou ver o amigo morto e ainda sorrindo. Estou doente por tudo isso e porque não posso pensar na morte, nem na minha nem na do Kraus nem da barata, tenho medo da pestilenta senhora e imagino-me puxando-lhe o grelo, esticando-lhe os pentelhos até ouvir sons tensos arrepiantes. Hoje
gritei demente: vem, Madama, vem, e irado, numa arrancada, soltei da pestilenta grelo e pentelhos e eles esbateram-se frenéticos nos seus baixos meios. Se pudesse seduzir a morte, lamber-lhe as axilas, os pêlos pretos, babar no seu umbigo, enturpir-lhe as narinas de hálitos
melosos, e dizer-lhe: sou eu, gança, sou eu, mariposa, sou Karl, esse que há de te chupar eternamente a borboleta se tu lhe permitires longa vida na olorosa quirica do planeta.

Ciao, irmanita".

(Hilda Hilst : Cartas de um sedutor - SP: Paulicéia, 1991.)

quinta-feira, 7 de junho de 2007

Saudade

"Em alguma outra vida, devemos ter feito algo de muito grave, para sentirmos tanta saudade... Trancar o dedo numa porta dói. Bater com o queixo no chão dói. Torcer o tornozelo dói. Um tapa, um soco, um pontapé, doem.(...) Mas o que mais dói é a saudade de quem se ama. (...) Saudade é não saber mesmo! Não saber o que fazer com os dias que ficaram mais compridos, não saber como encontrar tarefas que lhe cessem o pensamento, não saber como frear as lágrimas diante de uma música, não saber como vencer a dor de um silêncio que nada preenche."

Está acabando, mas minha saudade ainda não sabe disso :/.

sábado, 2 de junho de 2007

Canteiros

Quando penso em você fecho os olhos de saudade
Tenho tido muita coisa, menos a felicidade
Correm os meus dedos longos em versos tristes que invento
Nem aquilo a que me entrego já me traz contentamento

Pode ser até manhã, cedo claro feito dia
mas nada do que me dizem me faz sentir alegria
Eu só queria ter no mato um gosto de framboesa
Para correr entre os canteiros e esconder minha tristeza

Que eu ainda sou bem moço para tanta tristeza
E deixemos de coisa, cuidemos da vida,
Pois se não chega a morte ou coisa parecida
E nos arrasta moço, sem ter visto a vida.

Cecília Meireles